Miguel Urbano Rodrigues
Vasco Gonçalves faleceu a 11 de Junho de 2005. A direita portuguesa – incluindo a direcção do Partido Socialista – esforçou-se nos cinco anos transcorridos desde o seu desaparecimento físico por lhe apagar o nome da História.
Vasco Gonçalves faleceu a 11 de Junho de 2005. A direita portuguesa – incluindo a direcção do Partido Socialista – esforçou-se nos cinco anos transcorridos desde o seu desaparecimento físico por lhe apagar o nome da História.
Porquê? Precisamente porque o general Vasco Gonçalves deixou marcas profundas na Revolução de Abril, sabotada e destruída pelas forças da reacção, com a cumplicidade activa do Partido Socialista.
Encastelada no poder, a burguesia não esqueceu que o general, na sua breve passagem pelo Governo, apenas 15 meses, contribuiu decisivamente para que o povo português construísse História profunda, realizando como sujeito conquistas revolucionárias que impuseram o País ao respeito da humanidade progressista. É portanto natural que o mesmo governo que decretou luto nacional pela morte de uma vidente de Fátima tenha ignorado a do soldado revolucionário.
Foi indecorosa a atitude de Sócrates e sua gente. Mas não atingiu o objectivo. Vasco Gonçalves não foi esquecido; permanece no coração do povo português.
O general e o MFA
No livro-entrevista «Vasco Gonçalves – um general na Revolução», Manuela Cruzeiro evoca o sentimento de felicidade do soldado de 52 anos quando ruiu o fascismo.
«Quando aderi ao Movimento dos oficiais – esclarece – acreditei que poderia vir a desempenhar um papel destacado».
O sentimento do colectivo, enraizado num patriotismo pouco comum, facilita a compreensão de comportamentos assumidos por este militar atípico ao longo do processo revolucionário, atitudes muitas vezes mal interpretadas, não obstante elas reflectirem uma coerência exemplar.
Não sendo comunista tinha adquirido um conhecimento dos clássicos do marxismo que lhe proporcionou uma compreensão científica da História que, na prática da vida militar, se traduzia numa consciência da necessidade de formar «homens responsáveis» e paralelamente num sentimento de solidariedade com o seu povo, vítima como os das colónias de um sistema monstruoso.
Admito que somente as próximas gerações terão condições, com o distanciamento temporal, de situar sem paixão na História o papel que o cidadão, o soldado, o intelectual e o estadista cumpriram na Revolução Portuguesa.
Vasco Gonçalves cedo aprendeu a avaliar o significado e as limitações da intervenção do indivíduo na História.
É transparente a sua amargura ao meditar sobre a mesquinhez, a mediocridade, a ambição, a deslealdade, o medo do povo que em instantes decisivos contribuíram para inflectir o rumo da Revolução.
Cedo tomou consciência de evidências que a milhões de portugueses passaram despercebidas. Um exemplo: «O MFA – sublinha na entrevista a Manuela Cruzeiro – não era um movimento revolucionário (...) não tinha ao princípio, no seu horizonte, uma revolução social».
Foi a irrupção torrencial das massas, tomando as ruas, na jornada do 25 de Abril, que abriu as portas à aliança Povo-MFA, imprimindo ao processo um rumo não previsto. E lembra que «no próprio dia 25 de Abril, o MFA ainda se dirigiu ao Tomás como Sua Excelência o Presidente da República e ao Marcelo como Sua Excelência o Presidente do Conselho».
É muito negativa a opinião que transmite de Mário Soares, como homem e político. Quase sem recorrer a adjectivos, esboça o perfil de um político ambicioso, sem princípios nem convicções.
Comentando o papel que o ex-presidente da República desempenhou como ministro dos Negócios Estrangeiros, Vasco Gonçalves conclui que ele «não deu uma imagem fiel do MFA (...) e, nas suas frequentes viagens ao estrangeiro, aproveitava para desenvolver acções coordenadas com a social-democracia internacional, as quais, quanto a mim – sublinha – nunca eram úteis, no mínimo à consolidação do processo revolucionário» (págs. 147 e 148).
Mas que se poderia esperar de um político que, recentemente, enalteceu a contribuição de Frank Carlucci – o ex director da CIA – para «a instauração da democracia em Portugal» (pág. 267).
A serenidade e eticismo de Vasco Gonçalves estão aliás omnipresentes nas atitudes que assumiu sempre no seu relacionamento com os seus camaradas do MFA no período revolucionário e posteriormente quando, transcorridos anos, foi chamado a pronunciar-se sobre acontecimentos cujo dramatismo reflectiu a ruptura da unidade do Movimento que tornara possível o 25 de Abril.
Citarei apenas um exemplo. Esse eticismo transparece de maneira límpida nas páginas dedicadas às movimentações de carácter conspirativo que desembocaram no Documento dos Nove. Não guardou rancores, mas nas opiniões que, já no século XXI, emitiu sobre Melo Antunes, o camarada do MFA que mais admirava, não transparece o mais leve vestígio de animosidade pessoal.
«O Melo Antunes, sublinha no seu depoimento, era sem dúvida entre os meus camaradas o militar com maiores conhecimentos políticos, mais leituras, mais reflexão».
Convidado a pronunciar-se sobre a actuação dele antes e após o 25 de Novembro, dá ênfase à coerência do líder dos Nove:
«Ele não mudou de ideias ou de posição, no fundamental, entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Era um homem sinceramente de esquerda (à esquerda do PS), era um patriota, um anticolonialista convicto».
Mas visões diferentes da História teriam, inexoravelmente, de os distanciar.
«Melo Antunes – são palavras suas – pretendia caminhar como que por uma terceira via, mas a experiência tem demonstrado que essa via é o caminho da social-democracia para a direita».
Uma certeza me ficou de muitas horas de conversa com Vasco Gonçalves sobre a Revolução Portuguesa. Ninguém como ele conseguiu até hoje descer tão fundo na análise do comportamento e das motivações da parcela do corpo de oficiais do MFA, o movimento heterogéneo que concebeu e organizou o golpe militar do 25 de Abril, espoleta da Revolução Portuguesa.
O apaixonado pela História
Tive o privilégio de manter uma relação de sólida amizade com Vasco Gonçalves durante três décadas.
Não sendo comunista, não ocultava a sua adesão ao materialismo histórico. Recordo que um dia, na viragem do milénio, me chamou a atenção para trabalhos de Rosa Luxemburgo por os considerar úteis para a compreensão do oportunismo dos falsos renovadores do marxismo, herdeiros das bolorentas teses de Edward Bernstein e Kautsky.
Não se limitara a folhear «O Capital» como a maioria dos intelectuais de esquerda. Estudara a obra de Marx, de Engels, de Mao Tse, de Gramsci, lera marxistas latino-americanos como Mariategui, Caio Prado Júnior, Che Guevara.
Em Serpa, no I Encontro Civilização ou Barbárie, conheceu o húngaro Istvan Meszaros e o francês Georges Labica e recordo que a sua comunicação naquele evento mereceu palavras de grande apreço desses filósofos de prestígio mundial.
Militar, engenheiro, revolucionário, Vasco Gonçalves tinha paixão pela História que, tal como Lucien Febvre, considerava a mãe das ciências.
O interesse que manifestava em conhecer revolucionários e intelectuais que de algum modo tinham sido protagonistas de acontecimentos históricos inseria-se na sua perspectiva histórica.
Fidel Castro admirava-o e atribuiu-lhe a mais alta condecoração cubana, a Ordem de José Martí. Raul Castro foi seu amigo pessoal. Pedro Pires, companheiro de Amílcar e actual Presidente da República de Cabo Verde, convidou-o, quando primeiro-ministro, a pronunciar conferências na Cidade da Praia.
Recordo conversas de Vasco Gonçalves com o historiador britânico Basil Davidson, com o dirigente comunista boliviano Simon Reyes, e com Darcy Ribeiro, o fundador da Universidade de Brasília, quando os recebeu em sua casa.
No final do encontro com o primeiro, o general procurou na estante um livro do autor de Old Africa Rediscovered, pediu-lhe que o autografasse e na despedida fez uma confidência: «A sua visita é uma honra para mim. Não era fácil durante o fascismo obter os seus livros. Mas consegui e aprendi muito lendo o que escrevia sobre o colonialismo».
Simón Reyes, que na véspera o saudara num comício, na Voz do Operário, como «General del Pueblo», informou que um livro do general de crítica à Doutrina de Segurança Militar dos EUA aplicada nas Forças Armadas Portuguesas fora traduzido na Bolívia pelo Partido Comunista e circulara durante uma campanha eleitoral.
Quando Simón, então secretário-geral da Central Obrera Boliviana, expressou a sua satisfação por o ter conhecido, o general interrompeu-o:
«Não diga isso. O senhor é um herói da América Latina. Pode ser um civil, mas combateu de armas na mão à frente dos mineiros do seu país. Sinto-me pequeno junto de si...»
Henri Alleg e Vasco Gonçalves tinham um pelo outro um apreço que se transformou em amizade. Sempre que o autor de «A Questão» vinha a Portugal, o general reunia em sua casa um grupo de amigos, a maioria militares de Abril, e durante horas, no seu apartamento da Avenida dos EUA, a conversa tinha como tema o último livro do escritor.
O intelectual militante
Vasco Gonçalves tinha horror da pequena política. Mas ao deixar o Governo e passar à Reserva como militar, e depois à Reforma, não abandonou a política, tal como a concebia ao serviço da ideia da revolução social.
Grande tribuno, desenvolveu uma oratória inconfundível, um estilo de comunicação com a massa que empolgava os auditórios. Esclarecendo, emocionava e comovia pela autenticidade. Os portugueses progressistas sentiam que Vasco Gonçalves mantinha intacta a sua fidelidade aos princípios que defendera no Governo, ao projecto de sociedade inviabilizado pela contra-revolução.
Caluniado pelos partidos da burguesia e pelo imperialismo, o Companheiro Vasco – como lhe chamavam – foi até ao fim o revolucionário que contribuiu decisivamente para a criação do salário mínimo, para as nacionalizações, a criação de condições que permitiram conquistas como o 13.º e o 14.º salários, o defensor da Reforma Agrária, o soldado que soube responder com dignidade a todas as pressões e ameaças do imperialismo.
O lançamento, na sede da Associação 25 Abril, da Comissão Nacional de Solidariedade com o povo da Venezuela Bolivariana terá sido uma das suas últimas intervenções públicas. Foi então o orador principal e a sua comunicação a melhor e a mais aplaudida.
Antes do chamado Referendo Revogatório enviou a Hugo Chavez um DVD com uma mensagem de apoio – um pequeno filme que foi exibido em Caracas.
O patriota
A defesa da soberania nacional foi uma constante na política externa de Vasco Gonçalves quando primeiro-ministro.
É do domínio público a atitude digna que o general assumiu quando o presidente Gerald Ford, com arrogância, se lhe dirigiu em termos inaceitáveis, exibindo um anticomunismo primário. Anos depois foram divulgadas nos EUA declarações de Henry Kissinger, reproduzidas pelo Diário de Notícias, nas quais o ex-secretário de Estado reconhece a firmeza de carácter do então primeiro-ministro português, por ele definido como interlocutor muito difícil.
Aliás, já afastado do governo, Vasco Gonçalves demonstrou permanentemente o seu patriotismo. Em actos públicos realizados em Portugal e no estrangeiro e em ensaios e artigos que obtiveram ampla divulgação, combateu com firmeza o espírito de vassalagem do PS e do PSD nas relações com os EUA e com as estruturas de poder da União Europeia.
Mais de uma vez o ouvi comentar com indignação a tendência desses governos para minimizar o significado de datas ligadas a grandes acontecimentos da nossa História.
O feriado do 1.º de Dezembro, por exemplo, incomoda essa gente. Foi um exército improvisado, saído do povo, que durante 28 anos defendeu as fronteiras portuguesas das ofensivas da Espanha que era então, com a França, a primeira potência militar da Europa e expulsou do Brasil a Holanda, ao tempo a primeira potência naval e financeira do mundo.
Vasco Gonçalves tinha consciência de que o universal parte do particular, como dizia André Gide, e costuma recordar Fidel Castro. O general sabia que o internacionalismo não é incompatível com a defesa dos valores nacionais e que não ¬pode abdicar deles sem se desvirtuar. A preservação das culturas é inseparável do progresso da humanidade, não pode ser confundida com o nacionalismo obscurantista de raiz fascista.
Nestes dias em que intelectuais portugueses desfraldam mais uma vez a esfarrapada bandeira do iberismo e não hesitam em sugerir a transformação de Portugal numa espécie de região autónoma da Espanha, é oportuno recordar que Vasco Gonçalves identificou sempre na Revolução democrática e nacional de 1383-85 um acontecimento maravilhoso da nossa história.
Um dos mais belos trabalhos de Vasco Gonçalves é na minha opinião o ensaio que escreveu sobre Aljubarrota – estudo sobre a formação do exército popular que nos campos de Aljubarrota garantiu a continuidade de Portugal ao derrotar a cavalaria feudal espanhola e a grande nobreza de Portugal aliada a D. João de Castela (tal como o alto clero) garantindo a continuidade de Portugal – e foi publicado num Suplemento de o diário e posteriormente reproduzido pelo semanário Diário do Alentejo, e divulgado por revistas Web da América Latina.
Repito: é compreensível a hostilidade da burguesia portuguesa a Vasco Gonçalves.
Ele foi, com Álvaro Cunhal, um dos grandes portugueses do século XX. A sua intervenção na História ficou assinalada por mudanças revolucionárias que deixaram marcas indeléveis.
As forças do grande capital não podem perdoar-lhe a tenacidade com que – segundo as suas palavras – levou à prática ideias que tinha abraçado ao longo de toda a vida. Ideias que respondem a aspirações eternas do homem e que, por isso mesmo, não podem ser destruídas. Sufocadas pelos inimigos do progresso, elas voltarão a germinar.
Este texto foi publicado em Avante nº 1.907 de 17 de Junho de 2010.